Por um piloto anônimo
22h12. No assento esquerdo de um Airbus A320, com a mão esquerda no manche lateral e a direita nos thrust levers, eu observava o horizonte escuro à frente. As luzes de São Paulo estavam escondidas sob um manto espesso de nuvens e garoa.
— "Descent checklist completed", disse o meu copiloto, Pedro, com a voz firme, mas tensa.
Vínhamos de Curitiba, voo curto, tranquilo... até o TMA São Paulo. O ATIS já cantava o aviso: teto em 200 pés, visibilidade oscilando entre 1.000 e 1.200 metros. Mínimos para o ILS da 17R. Era isso, ou ir pra Viracopos.
— "Torre Congonhas, aqui é o Voo 4272, na final da ILS 17R, estabilizado a mil pés."
— "4272, autorizado pouso pista 17R, vento 190 graus, 4 nós. Mínimos em vigor, proceda com cautela."
A cabine estava no escuro, as luzes reduzidas para não cegar nossa visão noturna. O sistema de aproximação do A320 guiava com precisão cirúrgica, mas a visibilidade era quase nula. Ninguém falava muito. A tensão vinha em silêncio.
“Autopilot off”, eu disse, mais para mim do que para o Pedro.
A mão no manche. Umidade densa batendo no para-brisa. O PFD mostrava tudo dentro do envelope, mas meus olhos buscavam a pista. Só mais alguns segundos...
— “Minimums…”
Silêncio.
— “Continue,” falei. Sabia que tinha mais um ou dois segundos pra decidir.
De repente, como se alguém tivesse puxado a cortina: luzes da pista! Alinhadas, nítidas. Estávamos lá.
— "Runway in sight, landing," confirmei.
Tocamos suavemente, reversos armados, frenagem manual.
— “Bem-vindo a Congonhas,” disse Pedro, com um sorriso aliviado.
Estacionamos no gate 9, quase às onze da noite. Quando desliguei os motores, fiquei alguns segundos ali, ouvindo o barulho dos packs e o leve estalar do metal esfriando. Pousei em mínimos. Mas mais do que isso — mantivemos a calma. Fizemos o certo.
Com os motores desligados e os sistemas da aeronave em “cold & dark”, a cabine agora era tomada por um silêncio confortável. Eu retirei o headset, desci o brake lever e encostei na poltrona. Pedro já preenchia o logbook digital no tablet.
— “Foi por pouco,” ele disse, sem tirar os olhos da tela.
— “Por pouco... mas foi dentro,” respondi, com um sorriso de canto. “A meteorologia muda tudo. Ainda bem que tínhamos combustível de sobra.”
Saímos da aeronave ainda uniformizados, cruzando a área operacional rumo ao saguão do aeroporto. O cheiro de querosene, o ronco de APU distante e o barulho das vans da ground crew enchiam o ambiente com aquela vibração típica de Congonhas em fim de operação.
Na van da empresa, a caminho do hotel, ninguém falou muito. O corpo estava cansado, mas a mente ainda processava cada etapa da aproximação. O que fizemos certo, o que poderíamos melhorar. O checklist mental do piloto nunca para, mesmo com os pés no chão.
Aquele foi mais um voo. Um entre tantos. Mas o tipo de noite que te lembra por que você escolheu voar. Não é só o céu limpo que faz um bom piloto. São as decisões em noites como essa.
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