04h40. O alarme do celular vibra.
Nem preciso mais de som — meu corpo já decorou o horário. É o terceiro dia longe de casa. Hoje é Porto Alegre, ontem foi Salvador, amanhã talvez nem saiba.
Pernoitamos em mais de vinte cidades por mês. Hotéis diferentes, travesseiros que variam entre duros demais e moles demais. O corpo acostuma. A alma, nem sempre.
Visto o uniforme, passo um café com aquele sachê de hotel e observo o céu da janela do décimo andar. Ainda está escuro. Lá em casa, meus filhos devem estar dormindo. Às vezes deixo uma mensagem de voz antes de sair:
"Pai vai voar. Amo vocês. Depois eu ligo."
Desço pro saguão. A van da empresa me espera com os outros tripulantes. Alguns cochilam, outros já estão revendo o NOTAM da madrugada.
06h20. Já em posição, a cabine está pronta. Checklist feito, passageiros embarcados, pushback autorizado. A luz do sol começa a tocar o horizonte quando aciono os motores.
— "Tripulação, preparar para decolagem."
O avião corre pela pista como se tivesse pressa. Nós também temos — não de chegar rápido, mas de chegar bem. E com segurança.
Durante o voo, a mente vai longe. Penso nos desenhos colados na geladeira de casa, nos aniversários que perdi, nos jantares por videochamada. A aviação exige muito, entrega muito, mas cobra no mesmo tom.
"Tem previsão de folga daqui dois dias, comandante?" — pergunta uma comissária."Se São Pedro ajudar, talvez eu durma em casa amanhã." — respondo, rindo com aquele cansaço bom.
Pós-Voo
Faço uma videochamada com meus filhos. Eles me contam do dia na escola, mostram um desenho novo.
A aviação é feita de sonhos, sim. Mas também de saudades, ausências e compromissos com o que poucos veem: a rotina. O dia a dia que não cabe em foto de cockpit, nem em vídeo com trilha épica.
Só cabe aqui, no coração de quem escolheu voar.
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